Foto Sílvia Câmara( Igatu/BA )
De uma única peça ela se fez. Teceu a pele cor de barro. No rosto, duas esmeraldas ao molde de olhinhos. Mas do infinito vieram-lhe as lágrimas copiosamente vertidas. Saudade! Lembro de quando era ainda só grão de areia e lama de argila. Não enxergava a outra margem, no entanto não padecia. Dos escondidos da memória fez-se um clarão: lembrança atávica de poços e lagoas. Com esse arsenal Iandaia passeava. Descia do indígena Olimpo e visitava os abismos. Horas de tristeza e angústia antecedendo milhares de anos de regozijo.
Iandaia revê a meninice. Caminha pelas pontes da velha cidade. Abraça as árvores, desfolha os galhos. Levanta a cabeça e aspira todos os odores. Odores da cidade velha e da nova Iandaia. Seu olhar repousa nas águas do rio. Um rio nascido tão longe, coleando margem como serpente fosse, até o desaguar. Noite alta a cidade dorme e Iandaia vela seu sono abissal. Sem querer, pensa-se ave. Rememora um vôo antigo e azul de quando juntava plumagem. Voejando pelos céus qual anjo. Medo de queda, nem um pouquinho. Acaso encontrasse uma rapina, no sem-querer, por desencontro, havia de se safar, transida de outras forças. Iandaia segue as sombras e a névoa densa que vai se adensando cada vez mais. Um pio a alerta. É preciso sair do devaneio? Não há resposta: O silêncio só escuta. Pudesse agora voar e o céu tomaria. Apressa o passo. Alguém seguindo? Agora corre. É tão escuro!
Pelos desvãos da noite segue Iandaia. Acaso roubaste o fogo qual Prometeu? Por que espias noite afora? Por que passas as noites a espreitar? De que mistério padece Iandaia, tendo um rosário a desfiar por hora e um martírio a desvelar por dia? É que o céu carece de dores, pensa. A caminhar levo as noites, faça chuva, faça luar. No mais das vezes a bruma é a maior companheira. Percorro o mesmo trajeto da tapeceira homérica, noite após noite, durante uma eternidade. Quisera ir ao sertão, fazer o périplo de um rio. Atravessar suas veredas e voejar qual andorinha.
Ela quer ver o mar. O mar tão verde da cor dos olhos que lhe implantaram. A saudade sopra da onda. Vem com a brisa da beira da praia e as esmeraldas liquefazem-se. Sente a solidão e chama o companheiro. Esqueceu-se de tua sina? Iandaia tem uma missão noturna. Quem te livrará dos grilhões da noite? A vida tem duas margens: a de entrada e a de saída. O percurso de uma para a outra é o viver. A água que se atravessa é do tamanho de uma vida. Iandaia olha ao redor. Encontra sua clépsidra.
Do poente para o nascente caminha Iandaia, num anti-horário movimento. A esta hora, no já quase-noite, a pele sente a primeira aragem do desentardecer e Iandaia tenta acomodar o corpo de maneira que possa receber o derradeiro afago daquele sol que vai pousar no oceano. Logo, a noite e o escuro serão substância quase tão palpável quanto a liquidez do mar. Escoa a sexta hora noturna e ela não pode apresentar cansaço. É preciso uma canção para acalentar Iandaia. Está quase sem forças e os olhos pesam. Serei Eurídice? Não tenho um Orfeu. Se atravessar o Hades não haverá volta, e há uma imensidão para velar. Acorda, Iandaia. A lua te fará companhia.
Conta a lenda que Iandaia partiu de lagos ensolarados, mas as sombras a alcançaram. Nessa água corre também o meu sangue, soluça Indaia, poetizando a dor e seu drama. E as sombras caem tão pesadamente sobre aquela inefável água, parecendo querer sepultar-se nela. A água dando-lhes destino, levando-as num caudal. Nutrindo-as com suas lágrimas de influência orvalhada e soporífera. Uma palha se desprende das cabeleiras dos chorões e, arrastada, prende-se nos caniços. Iandaia contempla-a, em sua pensativa tristeza e murmura: quem me dera ser aquele fragmento de galho, arrastado pela correnteza etérea, qual Ofélia em seu devaneio aquático.
Iandaia quer escrever, Mas tal arte é de responsabilidade extrema. Saberá dispor dos fatos e acontecimentos, numa cronológica ordem? Tantas vezes vai o cântaro à fonte, que por fim lá ficam suas asas. E se o espelho d’água se move, a lembrança evocada se esfuma. É que o devir da água é a morte. Como num Lethe, bebe Iandaia do esquecimento. O que se passa debaixo dessas águas? A imaginação de Iandaia se solta...Houve um tempo em que eu via o sol todos os dias: do nascer ao anoitecer. Resignadamente, prossegue a caminhada. A peregrinação ainda não chegou a termo. Detém-se para tocar um alvo lençol, pendente do balaústre da penúltima e antiga ponte. Seu olhar volta a repousar na água que reflete uma lua vermelha. Desse olhar, Iandaia se convence do quão estúpido é o seu padecer. Alucinada, rasga o lençol balouçante e joga seus retalhos ao rio. O gesto reverbera: São retalhos de uma vida inteira. A água treme, não mais que Iandaia. Enlouquecida, toma consciência de ser mero personagem, jogo de marionete. Revolta-se. Arrisca-se Iandaia a saltar. Um vôo a alerta. Pássaros ou sombras vêm me perturbar o raciocínio. Obnubilam-me a visão, já turva pela descoberta. Pudesse agora encontrar Anratí. Mas neste mundo de taciatã não há lugar. Resta-me a água.
No sonho de uma vida acontecem muitas coisas. Perpassando a sutil claridade vê-se o equinócio: um tanto do dia — mesmo tanto de noite, em partes iguais. Por que Iandaia não percebe duas metades? Ela nasceu para a noite. O dia é sua sonolência, de uma alvura de mil guaratingas. A noite é sua companheira e guardiã, fusão de passado e presente. Vestida de violetas a sombra prossegue, mais vagarosa, excessivamente cansada. Passos cada vez mais lentos. Como pequeninas mortes internas, os sons se avolumavam, fazendo eco. Quase em tentativa derradeira, Iandaia arrisca correr. Não há obediência. Espinhos alfinetam sua alma. Nunca saberei o que de fato aconteceu. Parece que havia um espelho colocado impensadamente no leito do rio.
Atravessando a neblina surge tênue uma luz. Aracê — a aurora — raia com seu branco véu. A última ponte se avizinha. Percurso completado. Açoitada pelo vento matinal, sua pele arde e lágrimas umedecem sua face. Uma ancestral saudade cai sobre ela. Com o peso de mil outros anos – espaço e tempo infinitos. A companheira sombra alonga o olhar, visitando ou perscrutando o leito do rio. Com este são vinte e um pernoitares e amanheceres. E a ponte última é chegada. Onda não há na água, somente o espelho chamando. Agora Iandaia tem pressa. Roubando ao Poeta — Sua pressa e firmeza eram de quem conhecia todas as veredas do próprio destino. Qual o melhor atalho: a certeza da morte ou a descoberta da vida?
Vorazmente a água reclama o mergulho duplo: Iandaia e sombra. Todas as flores entortam-se nos talos, pendurando-se na amurada beirando o rio. Espetáculo noturno diariamente aguardado. Três semanas de vigiar por uma de descansar: somente enquanto Ati é nova. Última noite de plenilúnio, Iandaia despede-se da ponte. Despe-se de roupa e medo. Salto. O segredo foi revelado. Para conseguir o eterno encontro seriam necessários muitos vinte e um albores para tecer a história de uma vida, onde dois passam a ser um. Duas almas trocam confidências durante sete noites de lua-nova. Sete alvoradas as vêem dormir. A família dali seria edificada. Seria? E se a sina fosse vitalícia e hereditária? Capitania de fardo. No sono, repousam os braços como galhos entrelaçados perfiando a água entre os dedos. Quais anjos de asa única necessitando o par para alçar vôo. Iandaia encontrada em Anrati. Canção do amor de sete noites, sete vôos, sete sonhos. Infinitamente, tantas canções de Iandaia!
De uma única peça ela se fez. Teceu a pele cor de barro. No rosto, duas esmeraldas ao molde de olhinhos. Mas do infinito vieram-lhe as lágrimas copiosamente vertidas. Saudade! Lembro de quando era ainda só grão de areia e lama de argila. Não enxergava a outra margem, no entanto não padecia. Dos escondidos da memória fez-se um clarão: lembrança atávica de poços e lagoas. Com esse arsenal Iandaia passeava. Descia do indígena Olimpo e visitava os abismos. Horas de tristeza e angústia antecedendo milhares de anos de regozijo.
Iandaia revê a meninice. Caminha pelas pontes da velha cidade. Abraça as árvores, desfolha os galhos. Levanta a cabeça e aspira todos os odores. Odores da cidade velha e da nova Iandaia. Seu olhar repousa nas águas do rio. Um rio nascido tão longe, coleando margem como serpente fosse, até o desaguar. Noite alta a cidade dorme e Iandaia vela seu sono abissal. Sem querer, pensa-se ave. Rememora um vôo antigo e azul de quando juntava plumagem. Voejando pelos céus qual anjo. Medo de queda, nem um pouquinho. Acaso encontrasse uma rapina, no sem-querer, por desencontro, havia de se safar, transida de outras forças. Iandaia segue as sombras e a névoa densa que vai se adensando cada vez mais. Um pio a alerta. É preciso sair do devaneio? Não há resposta: O silêncio só escuta. Pudesse agora voar e o céu tomaria. Apressa o passo. Alguém seguindo? Agora corre. É tão escuro!
Pelos desvãos da noite segue Iandaia. Acaso roubaste o fogo qual Prometeu? Por que espias noite afora? Por que passas as noites a espreitar? De que mistério padece Iandaia, tendo um rosário a desfiar por hora e um martírio a desvelar por dia? É que o céu carece de dores, pensa. A caminhar levo as noites, faça chuva, faça luar. No mais das vezes a bruma é a maior companheira. Percorro o mesmo trajeto da tapeceira homérica, noite após noite, durante uma eternidade. Quisera ir ao sertão, fazer o périplo de um rio. Atravessar suas veredas e voejar qual andorinha.
Ela quer ver o mar. O mar tão verde da cor dos olhos que lhe implantaram. A saudade sopra da onda. Vem com a brisa da beira da praia e as esmeraldas liquefazem-se. Sente a solidão e chama o companheiro. Esqueceu-se de tua sina? Iandaia tem uma missão noturna. Quem te livrará dos grilhões da noite? A vida tem duas margens: a de entrada e a de saída. O percurso de uma para a outra é o viver. A água que se atravessa é do tamanho de uma vida. Iandaia olha ao redor. Encontra sua clépsidra.
Do poente para o nascente caminha Iandaia, num anti-horário movimento. A esta hora, no já quase-noite, a pele sente a primeira aragem do desentardecer e Iandaia tenta acomodar o corpo de maneira que possa receber o derradeiro afago daquele sol que vai pousar no oceano. Logo, a noite e o escuro serão substância quase tão palpável quanto a liquidez do mar. Escoa a sexta hora noturna e ela não pode apresentar cansaço. É preciso uma canção para acalentar Iandaia. Está quase sem forças e os olhos pesam. Serei Eurídice? Não tenho um Orfeu. Se atravessar o Hades não haverá volta, e há uma imensidão para velar. Acorda, Iandaia. A lua te fará companhia.
Conta a lenda que Iandaia partiu de lagos ensolarados, mas as sombras a alcançaram. Nessa água corre também o meu sangue, soluça Indaia, poetizando a dor e seu drama. E as sombras caem tão pesadamente sobre aquela inefável água, parecendo querer sepultar-se nela. A água dando-lhes destino, levando-as num caudal. Nutrindo-as com suas lágrimas de influência orvalhada e soporífera. Uma palha se desprende das cabeleiras dos chorões e, arrastada, prende-se nos caniços. Iandaia contempla-a, em sua pensativa tristeza e murmura: quem me dera ser aquele fragmento de galho, arrastado pela correnteza etérea, qual Ofélia em seu devaneio aquático.
Iandaia quer escrever, Mas tal arte é de responsabilidade extrema. Saberá dispor dos fatos e acontecimentos, numa cronológica ordem? Tantas vezes vai o cântaro à fonte, que por fim lá ficam suas asas. E se o espelho d’água se move, a lembrança evocada se esfuma. É que o devir da água é a morte. Como num Lethe, bebe Iandaia do esquecimento. O que se passa debaixo dessas águas? A imaginação de Iandaia se solta...Houve um tempo em que eu via o sol todos os dias: do nascer ao anoitecer. Resignadamente, prossegue a caminhada. A peregrinação ainda não chegou a termo. Detém-se para tocar um alvo lençol, pendente do balaústre da penúltima e antiga ponte. Seu olhar volta a repousar na água que reflete uma lua vermelha. Desse olhar, Iandaia se convence do quão estúpido é o seu padecer. Alucinada, rasga o lençol balouçante e joga seus retalhos ao rio. O gesto reverbera: São retalhos de uma vida inteira. A água treme, não mais que Iandaia. Enlouquecida, toma consciência de ser mero personagem, jogo de marionete. Revolta-se. Arrisca-se Iandaia a saltar. Um vôo a alerta. Pássaros ou sombras vêm me perturbar o raciocínio. Obnubilam-me a visão, já turva pela descoberta. Pudesse agora encontrar Anratí. Mas neste mundo de taciatã não há lugar. Resta-me a água.
No sonho de uma vida acontecem muitas coisas. Perpassando a sutil claridade vê-se o equinócio: um tanto do dia — mesmo tanto de noite, em partes iguais. Por que Iandaia não percebe duas metades? Ela nasceu para a noite. O dia é sua sonolência, de uma alvura de mil guaratingas. A noite é sua companheira e guardiã, fusão de passado e presente. Vestida de violetas a sombra prossegue, mais vagarosa, excessivamente cansada. Passos cada vez mais lentos. Como pequeninas mortes internas, os sons se avolumavam, fazendo eco. Quase em tentativa derradeira, Iandaia arrisca correr. Não há obediência. Espinhos alfinetam sua alma. Nunca saberei o que de fato aconteceu. Parece que havia um espelho colocado impensadamente no leito do rio.
Atravessando a neblina surge tênue uma luz. Aracê — a aurora — raia com seu branco véu. A última ponte se avizinha. Percurso completado. Açoitada pelo vento matinal, sua pele arde e lágrimas umedecem sua face. Uma ancestral saudade cai sobre ela. Com o peso de mil outros anos – espaço e tempo infinitos. A companheira sombra alonga o olhar, visitando ou perscrutando o leito do rio. Com este são vinte e um pernoitares e amanheceres. E a ponte última é chegada. Onda não há na água, somente o espelho chamando. Agora Iandaia tem pressa. Roubando ao Poeta — Sua pressa e firmeza eram de quem conhecia todas as veredas do próprio destino. Qual o melhor atalho: a certeza da morte ou a descoberta da vida?
Vorazmente a água reclama o mergulho duplo: Iandaia e sombra. Todas as flores entortam-se nos talos, pendurando-se na amurada beirando o rio. Espetáculo noturno diariamente aguardado. Três semanas de vigiar por uma de descansar: somente enquanto Ati é nova. Última noite de plenilúnio, Iandaia despede-se da ponte. Despe-se de roupa e medo. Salto. O segredo foi revelado. Para conseguir o eterno encontro seriam necessários muitos vinte e um albores para tecer a história de uma vida, onde dois passam a ser um. Duas almas trocam confidências durante sete noites de lua-nova. Sete alvoradas as vêem dormir. A família dali seria edificada. Seria? E se a sina fosse vitalícia e hereditária? Capitania de fardo. No sono, repousam os braços como galhos entrelaçados perfiando a água entre os dedos. Quais anjos de asa única necessitando o par para alçar vôo. Iandaia encontrada em Anrati. Canção do amor de sete noites, sete vôos, sete sonhos. Infinitamente, tantas canções de Iandaia!
Sílvia Câmara
Glossário – tupi-guarani/português
Anratí – o despertar do dia
Aracê – a aurora
Atí – a lua, na mítica bororo
Guaratinga – garça branca
Iandaia – variante de Iandara – meio-dia
Taciatã - dor, sofrimento
Glossário – tupi-guarani/português
Anratí – o despertar do dia
Aracê – a aurora
Atí – a lua, na mítica bororo
Guaratinga – garça branca
Iandaia – variante de Iandara – meio-dia
Taciatã - dor, sofrimento
4 comentários:
E se a sina fosse vitalícia e hereditária?
Acho que não haveria esperança!
Acvredito que nós somos os criadores das Sinas.
Xaxuaxo
Silvia, Silvia...
Estou emocionada com esse texto lindo.
Um mergulho poético belíssimo no mundo imaginário de Iandaia.
Parabéns, Silvinha.
Conceição
Silvia, muito bonito este seu texto. Gosto de textos míticos assim bem escritos.
Estou retribuindo sua visita, começando a conhecer seus escritos. Parabéns por eles, pelo blog (ainda não fui nos poetas independentes), vc. faz literatura a sério, a fundo: gosto.
Mas que coincidência, vc. chegar ao acreditando via Namibiano - isto é, via Angola e Reino Unido -, e encontrar lá um texto sobre a Fliporto, e enviá-lo à sua amiga que faz o site do evento, não é? Adoro esses cruzamentos blogosféricos!
Vou voltar.
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