quarta-feira, novembro 03, 2010

2a Parte da Resenha Terra Sonâmbula


cont...


Pela linguagem, somos apresentados a novas palavras, a substantivos que se transformaram em verbos — verbizaram-se, por assim dizer — “Também, dentro de nós, o mosquito pantaneja, podrecendo nossas águas”; “ Havia, entre sua manada, um muito triste boizarrão. De manhã até de noite o bicho boiava em rasteira solidão”; “ mas Junhito ainda lutava para se desbichar”; “ ele pensamenta, fiando conversa”.
No curso da leitura a paisagem vai mudando e Mia Couto escreve causando a tensão necessária para mover o leitor no prosseguimento da leitura, indo em busca de um suspense que, quem sabe, se resolva nas próximas páginas. O fantástico acontece ao longo de toda a narrativa. É assim que surge uma terra sonâmbula, que torna os personagens parentes do futuro:
“À volta do machimbombo Muidinga quase já não reconhece nada. A paisagem prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, ela sozinha, deambula em errâncias? De uma coisa Muidinga está certo: não é o autocarro que se desloca. Outra certeza ele tem: nem sempre a estrada se movimenta. Apenas de cada vez que ele lê os cadernos de Kindzu. No dia seguinte à leitura, seus olhos desembocam em outras visões”. (p.109)

Por intermédio das leituras de Muidinga, percebe-se o desenrolar de uma guerra e cada vez que os dois, velho e miúdo, encontram uma nova situação, ela está envolvida com a guerra:
“Por que motivo ele não recebia bem os visitantes como ordenavam as velhas leis hospitaleiras? De facto, responde o velho, não é assim a maneira da nossa raça. Antigamente, quem chegava era em bondade de intenção. Agora quem vem traz a morte na ponta dos dedos”. (P.73)


Outros personagens, não de menor importância, mas de uma maneira diferente, contribuem para a manutenção do clima de expectativa do romance: é o caso do amor encontrado num barco abandonado e à deriva, por meio de Farida, gêmea amaldiçoada, banida e separada da sua igual: Carolinda. Romão Pinto, português que voltou da morte, “depois de mais de uma década de definitiva ausência”, tinha sido casado com Dona Virgínia — “branca de nacionalidade, não de raça. O português é sua língua materna e o makwa, sua maternal linguagem — aquela que amealha fantasias, cada vez mais se infanciando”. E o indiano pacifista, amigo de Kindzu quando menino. Surendra Vala é o seu nome. Tal personagem pode ser visto como uma espécie de consciência crítica de Mia Couto, pois incorpora aquele que percebe a desordem que impera em Moçambique, cria um novo sentido de identidade e amplia, em Kindzu, o conceito de pátria. “Era o indiano que me punha o pé na estrada, me avisando da demora” diz Kindzu. Em contraponto à segregação racial existente em África, Mia Couto apresenta um Surendra sábio, que se diz da mesma raça “Vês, Kindzu? Do outro lado fica a minha terra. E ele me passava um pensamento: nós, os da costa, éramos habitantes não de um continente mas de um oceano. Eu e Surendra partilhávamos a mesma pátria: o Índico... Somos da igual raça, Kindzu : somos índicos!”.
Mia Couto permite-nos entrever que em sua literatura cultiva o sonho. Será ele um poeta que sonha prosas ou um prosador que sonha poesias? O onírico acontece como se fosse realidade. Nos sonhos aparecem a dor, a guerra, o amor e a esperança “— o que andas a fazer com um caderno, escreves o quê? — Nem sei, pai. Escrevo conforme vou sonhando. — e alguém vai ler isso? — talvez. — é bom ensinar alguém a sonhar.” Como num devaneio, o ambiente ideal é localizado “Farida queria sair de África, eu queria encontrar um outro continente dentro de África”.
Ainda em sonhos, aparece uma outra consciência que critica as guerrilhas internas, o que o povo fez contra o próprio povo: é o feiticeiro que discursa no último capítulo do livro: “Não mais procureis vossos familiares que saíram para outras terras em busca de paz. Mesmo que os reencontreis eles não vos reconhecerão. Porque esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós”.
Acontece também uma espécie de exorcização das lembranças de guerra:
“Não quero lembrar nada, nem Farida, nem Carolinda, nem Quintino, nem ninguém. O que queria mesmo era ir mar adentro, como Assma, empurrado num barquinho, sem destino. Ou fazer como minha mãe me ensinou: ser a mais delicada sombra. É isso que desejo: me apagar, perder voz, desexistir. Ainda bem, que escrevi, passo por passo, esta minha viagem. Assim escritas estas lembranças ficam presas no papel, bem longe de mim.” (p.214)

Em última análise, Terra Sonâmbula é uma narrativa emocionante que apresenta elementos de muitas mitologias tribais e de lendas, contribuindo para a formação de uma identidade nacional moçambicana, mostrando ao mundo a riqueza cultural de uma África que não conhecemos, por intermédio da escrita de um autor comprometido com seu povo, sua cultura e sua terra. A mesma terra africana em cujos grãos de areia os escritos do personagem Kindzu vão se transformando em páginas de terra.

sexta-feira, agosto 06, 2010

Casa

Foto:Sílvia Câmara


Uma casa é uma casa:
mesmo rachada,
ainda que pendurada.
Casa é sempre casa.
Sossego!
Sílvia Câmara

sexta-feira, março 26, 2010

Fragmentos de retornos e cotidianos

Foto: Silvia Câmara

E a menina faz um percurso fantástico naquele entrelugar,

entre o despertar e o sono.



Escorre,


vagarosamente,


uma neblina povoada de sonhos,


pedaços de vidas, fios condutores de memória


— Aquela, a guardiã das lembranças —,


as imagens aparecem na mente, às vezes, longe, perto, longe.
Um assovio, talvez um pio, denuncia a hora do levantar,


prenuncio de alvorada.


Véspera de sol-nascer.
De volta à realidade.

Silvia Câmara