sexta-feira, março 27, 2009

Escrito pelo vento

Foto- Silvia Câmara
Aquilo tudo foi escrito com o aval do vento. Depois de contada a história, a assinatura firmada foi a dele. Alguns disseram ouvir um crocitar. Da parte, dela apenas escutou um cicio. Cada qual ouve o que mais lhe aprouver. Melhor para ela então.


Violeta marcou encontro na curva do eucalipto grande. Eles se haviam encontrado, corrigindo: eles se haviam olhado duas vezes antes — quando o condutor da carroça parou para perguntar pelo pastor e no dia em que o rio encheu, inundando a vizinhança de Violeta. Como dizia a avó: é o apocalipse. Esse barulho imenso só pode ser o juízo final. Umas fagulhas sombrias caindo do céu e uma tromba d’água desembestada vindo serra abaixo.


A prima que criava borboletas conseguiu partir para as terras mais altas. Lá, dizia ela, tem uma árvore onde posso colocar minhas crias para dormir e, se for preciso, elas entram na casca, sugam o sumo e ficam adormecidas como ursos hibernando. Quando terminar o dilúvio elas saem e voltam a voar como no primeiro dia de primavera. Daí então eu posso trazê-las outra vez para casa. O que acontece quando preciso usar tal expediente é que elas não querem dormir na primeira noite. Ficam borboleteando em volta da minha cabeça como se pedissem mais sumo. Faço de contas que não estou escutando, até que lá pelas três horas da manhã elas se aquietam, mas não por muito tempo. Às seis elas já estão prontas para começar o bailado matinal.


A tia que tratava dos umbigos dos recém-nascidos avisou que não iria sair da casa. Precisava ficar alguém para tomar conta da horta de umbigos. E a horta já estava tão grande que mais parecia um pomar. É que a cada umbigo que ela enterrava, plantava uma muda diferente. Até que a diversidade de plantas da cidade acabou, então a tia começou a repetir. Percebeu-se que, dependendo de como era a saúde da criança, a planta nascia mais ou menos viçosa. Bem, isso era o que dizia ela. Havia uma suspeita de que ela trocava as mudas de lugar, pela madrugada. A prima borboleteira foi quem confidenciou que uma noite em que as borboletas faziam serão, ela ouviu barulho de terra cavada e viu a tia colocando uma muda no lugar em que havia outra antes. Só não sabemos é se o fato se confirmou.


Quando o relógio da igreja bateu a primeira hora da tarde, Violeta desvestiu o avental e avisou que iria observar o ninho de uns periquitos roxos que arribaram não se sabe de onde e fizeram morada na cidade. Só que ninguém sabia onde ficava. Somente Violeta dizia desses periquitos. A família acostumada a ver tantas esquisitices, achou a coisa mais natural.


Só que Violeta correu para a curva do eucalipto grande. Não se sabe o que deu nela para marcar encontro com aquele moço estranho. Não se sabe nem se ele iria comparecer. Mas na cabeça dela estava tudo acertado: dois dedos de prosa e um anel de noivado, antes que o mundo se derretesse em água. Ela chegou mais cedo e ficou olhando com aquele olhar de prata liquida, nenhuma ansiedade, apenas certeza.


Primeiro veio uma brisinha ligeira, a água já se despejando. O barulho que ela ouviu nem chegou a ser barulho, era apenas um farfalhar. Um soprar de nuvens, bafejo de anjo. Bom ou mal? O futuro foi quem mostrou. A moça sentou-se sob o eucalipto, arrancando as casquinhas do tronco secular. À proporção que ela mastigava, uma cor amarelecida toldava-lhe o semblante, mas ela, desapercebida, continuava a labuta e a espera. Estou pronta! Se pudesse ter escolhido, talvez tivesse nascido água. Porque para a água é mais fácil dizer eu te amo, ela passa por todos os lugares, penetra nos mais íntimos segredos. Descobre todos os mundos, a despeito de qual seja o gênero.


E também se fosse água, sua dedicação talvez residisse em esmiuçar os segredos do silêncio, da morte e da vida. Quiçá desconstruindo as fronteiras que teimam em resistir aos sentimentos. Havia entrado num espaço sem retorno. Igual a acreditar em Deus. Sim, porquanto a nossa impossibilidade de definir quem ou que é Deus, repercute muitas vezes nas nossas crenças. Se ele me escuta e nascem flores, vejo-as junto de mim, ao alcance do coração. Violeta continuava a espera e a água já começava a delinear o caminho do céu a terra.


Foi tudo muito rápido. Passaram os periquitos, as borboletas, os umbigos germinando, as cascas descomidas do eucalipto e aquele olhar: intenso, líquido, quase escuro de tão profundo. Nem deu para ouvir a chegada. Também não se sabe se ela dormia ou sonhava de olhos de abertos. O único que sabemos foi isso que o vento contou.


Sílvia Câmara

terça-feira, março 24, 2009

Dicotomia

Foto: Silvia Câmara

A ambivalência do querer
É não poder deixar o dentro
nem conseguir esquecer o fora.
Desejo conferir sentido ao passado
Mas um atemporal tempo não permite.
Busco a inteireza
Para além de tudo que me fragmenta.
Nesse compasso estranho
Emerge uma imagem
- Diretamente da alma -
Da Alma?
O saber-me no mundo:
Presentificação de mim
Ou espectro?

Silvia Câmara