terça-feira, agosto 28, 2007

Tragam as vasilhas

Recebi esta crônica do grupo Poetas Independentes, pedi permissão ao Geraldo Pereira e ei-la postada aqui no Brisa , com a mesma foto do original.



Sou do tempo dos encantadores pregões, de antigos vendedores que ofereciam seus produtos com a musicalidade da voz, grave ou aguda, a depender de cada um. De poetas do dia-a-dia das coisas, cantores das ruas, com rima ou sem rima, contanto que mostrassem a variedade ou a qualidade e obtivessem o desejado retorno das moradias de classe média. De meninos ou de meninas, das senhoras bem trajadas ou daquelas de roupas cosidas e até cozidas com a crueza da chita, que nas casas serviam como domésticas, tangidas dos canaviais distantes. Como esquecer do que me falou Sílvio Costa, que pras bandas de Pau Amarelo corteja saudades: “Espanador/Vasculhador/Colher de pau/Esteira d’Angola/Rapa Coco/E grelha/Eu tenho quartinha”. Foram coisas assim, mais do que puras, que preencheram tardes mornas de sábado. Ou foram os acordes tirados da gaita do amolador de tesouras, que a tudo amolava ou as notas do homem do pirulito que embalaram sonhos e devaneios da meninada de outros anos ou de outras eras.Detesto essa modernidade do hoje, do microfone instalado em velhas e carcomidas kombis anunciando ovos e verduras, uvas e bananas, laranjas aos borbotões e abacaxis em quantidade. Até o sorvete de fato artesanal no meu antes vem sendo comercializado assim: "Olha o sorveteiro barateiro! Dez bolas por um Real! Tragam as vasilhas! Tragam as Vasilhas!". Ninguém agüenta mais a repetição, que lembra um certo apresentador de televisão dizendo: "Abram as cortinas! Abram as cortinas!". E se vou mudar de casa, deixando de assistir neste canto para morar num recanto, o Rosarinho, lugar de onde emergem muitas das reflexões de Fátima Quintas - o Quintas da Jaqueira -, não me livrarei do sorveteiro barateiro. Dia desses por lá ouvi a indiscreta loa e mais do que perplexo confidenciei aos meus botões: "Eu não acredito numa coisa dessas!". Mas, é verdade, responderam! Lamento o desaparecimento de toadas como esta: "Eu tenho lã de barriguda/ Para travesseiro/...". Ou : “Olha a bolinha de cambará/Dois pacotes é um vintém/...”O cavaquinho de agora vende-se aos pacotes, enrolados no plástico translúcido, sem a sonoridade do velho triângulo, equilátero, sobretudo, que pendia do indicador esquerdo, tocado, na mais sincrônica das formas, com vareta bem temperada de aço acalmado à mão direita, a percorrer cada um dos lados, tirando as notas dos desejos infantis. E o cuscuz matinal, despertando as famílias com o silvo forte do vendedor, em tudo, madrugador? Desapareceu, quase, deste Recife contemporâneo, desses dias que correm mais que aqueles, de criança! Um ou outro remanescente percorre as ruelas das periferias urbanas, sustentando tradições! O sino do vendedor de bolos, de broas e de outros acepipes, que carregava na cabeça a produção doméstica, em móvel envidraçado, com quatro longas pernas de cor azul, silenciou na distância dos muitos anos contados pra trás! O homem que gritava a macaxeira e que ouvia de nós outros a indagação cavilosa – “Como se chama a sua mãe?” -, calou-se, vive a mudez das lembranças, apenas, na surdez das impiedosas mudanças!Mudou tudo, afinal, mudaram as pessoas da rua e os parentes, há filhos jovens e sobrinhos novos contados em maioria! Morreram os velhos! E morreram, do mesmo jeito, os autores e os atores dos antigos pregões, dos matinais e dos vespertinos, anônimos cantadores das ruas, de cujas transformações nasceram muitas das dores d'alma e das saudades. Sequer existem babás a cantarolarem a própria desdita: "Quem faz o bem/Recebe sempre o mal/...". E nem meninas brincando: "Eu sou rica/Rica/Rica/...". Tampouco adolescentes em flor entoando: "...Serei eu rico/Ou muito pobre?/ Que será/Será/Aquilo que for/Será/O futuro não se vê/Que será/Será....". Morreram as tias velhas, viúvas e mal-amadas, que versejavam: "Nos cigarros que eu fumo/Te vejo nas espirais/Nos livros que eu tento ler/Em cada página tu estás/Me deixa ao menos/Por favor/Pensar em Deus..."."Tragam as vasilhas/Tragam as vasilhas...", na verdade, é o refrão das manhãs ou das tardes dos sábados e dos domingos e "Abram as cortinas! Abram as cortinas!" encerra, afinal, o domingo, antecipando inquietudes.

Crônica escrita há quase uma dezena de anos, antes da mudança de casa, da Boa Vista para o Rosarinho.

Texto oferecido a um grande amigo de infância e de adolescência, de juventude e de agora, da maturidade dos meus anos: Moisés Diniz

6 comentários:

Moacy Cirne disse...

Oi, cheguei aqui através de um comentário seu no Bosco Sobreira: cheguei e gostei. Como gosto de muitas de suas referências literárias e, em cinema, do Potemkin, em particular. Portanto, voltarei, para brechar com mais cuidado e mais tempo suas "brisas poéticas". Em tempo: tenho um amigo baiano que mora por aí (Salvador, né?). É o Almandrade, artista plástico e poeta visual. Um abraço.

Muadiê Maria disse...

Sinto muita saudade destes vendedores...
A foto é massa!
bjo

Anônimo disse...

Que gostoso ler tudo isso, lembrei até do dono de uma carrocinha na rua Almirante Tamandaré, aqui no Rio, que vendia ovos, legumes e frutas, inclusive uvas. O pregão dele era: Ovo e uva boa! Ovo e uva boa! Ovo e uva boa! Principalmente quando passava uma mulher gostosa. Beijos.

Anônimo disse...

Muito obrigado por seu comentário. Recebo-o como um estímulo. Sinto-me honrado de contar com intelectuais de seu porte como leitor de meus escritos despretensiosos.
Um forte abraço, minha amiga.

José Calvino disse...

Boas lembranças.Antigamente, se conseguia identificar os vendedores ambulantes pelos seus sons.O verdureiro carregando os balaios:"verdureiro, eiro,eiro".O gazeteiro:"Olha o Comeucio".O vendedor de cuscuz com seu apito saudoso. Uma corneta anunciava que o picolé estava passando.O barulho de caçarolas batendo indicava que o consertador estava ali.O tocador de realejo trazia doces conhecidos como"japonês".Estes e outros sons, me fizeram até gravar um CD que traz coisas do Recife bom de antigamente. Abs,
José Calvino
Recife

Sílvia Câmara disse...

Gratíssima pelas visitas de vocês.
São elas que nos estimulam a continuar alimentando o blog.
Apareçam. Sintam-se em casa. O Brisa é de vocês também.
Um abraço desde a Bahia.