Tudo acertado. Três passagens compradas para o dia 31 de outubro — Dia das Bruxas. Ainda bem que foi para esse dia, pois se fosse para o dia seguinte, talvez a viagem já tivesse iniciado mais estressada. Explica-se: depois do acidente que vitimou cento e muitas pessoas, os controladores de tráfego aéreo passaram a trabalhar com um número inferior de vôos, para garantir a segurança dos usuários e a sanidade mental deles.
Horário marcado, chegada ao aeroporto para o check-in. Qual não foi a surpresa ao perceber que a filha mais nova havia levado, por equívoco, a identidade da irmã do meio. Como é que embarca desse jeito? Ainda bem que o muito-gente-boa motorista do sogro estava pelas redondezas, correu em casa e trouxe a carteira de identidade correta. Ufa! Por um triz.
Tudo resolvido, aguarda-se por meia hora o embarque, iniciava-se a operação que transformaria os aeroportos do país num caos. Atenção senhores passageiros, preparar para o embarque. Vamos.
Duas horas depois, vejo, do céu, o chão da minha terra. Aquele mar de um verde intenso, lá, chamando, vemmmm, vemmmm, vemmmm. As jangadinhas ao longe, cortando o infinito. Parecia até que de um momento para o outro podia aparecer o guerreiro branco, singrando aqueles bravios verdes mares.
Aeronave no solo. Pega bagagem, saimos. Lá está ela, ansiosa, aguardante, num pé e n’outro: a mãe, feliz da vida porque a casa iria outra vez ficar cheia. Nós e todo o restante da família que, com certeza iria nos visitar. Como nos velhos tempos, casa repleta, conversas, música, risos, gargalhadas, uma emoção aqui e ali. O almoço caprichado. Maria pajeando sempre. ‘Ta bom isso, dona , quer mais um pouquinho daquilo, seu. Ô minha flor de bugari, você não quer mais uma coisinha disso?’ Casa de mãe é assim. Eterna festa para os filhos. Muito papo, café mais tarde, bolo, queijo coalho, bolachinha romana e carinho, esse por demais.
O irmão mais velho, desta feita ,ficou devendo a peixada. Enfermou-se, uma gripe misturada com alergia que só tossia e fungava. Mas deu para colocar a conversa em dia. Antes do aparecimento da influenza, tertuliamos uma noite inteira regada a uns oito ou doze anos (naquela hora a idade não fazia muita diferença). Projetos sendo construídos e compartilhados. Outros, já realizados servindo de painel.
O irmão do meio, mania de provedor, levando sapotis e mangas nascidos na casa antiga e até hoje cuidada por ele. Leva e planta lá na Bahia. As frutas vieram, claro, os caroços já estão no aguardo do plantio.
A tia solteira, a mais faceira das irmãs, fazendo sala todos os dias, feliz da vida. Os sobrinhos indo e vindo o tempo inteiro. Como se uma lente de voltar no tempo tivesse sido acionada e surgisse uma réplica de anos atrás. A tia a ver duas gerações de sobrinhos.
Noite inteira proseando com os amigos antigos, ouvindo música e confissões ao sabor de um vinho macio e rubro.
Mas a grande descoberta foi uma carta antiga, garimpada, ou melhor, surripiada pelo irmão mais velho, dos pertences do pai voluntário de guerra. Data a carta de dezembro de 1944 e narra a angústia da partida para a guerra, a entrega dos soldados à embriaguez, as tristezas. Relato pungente, de um jovem de vinte anos apenas, rogando à família que, por sua vez, clame aos céus para que ele volte à terra natal.
É sempre assim, cada vez que vamos, fica a vontade de voltar. Esse é o bom da vida. Poder ir e vir, saber que as baterias poderão ser recarregadas, dar de nós e trazer pra gente. A gente, a nossa gente. Assim que der, volto lá. Mais vale uma tarde jogando conversa dentro, sentados num sofá, num banco, num muro, numa varanda, do que mil sessões de terapia.
Hora de voltar, que a casa de cá espera.
Sílvia Câmara - 2006